quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A Delegação de Poderes: “Se podia viver sem ela? Podia, mas não era a mesma coisa”.

A dinâmica do Direito Administrativo é bastante complexa. Olhando para o grande número de competências e atribuições de determinado órgão, nem sempre é fácil para os agentes desempenhar todas as tarefas que lhe competem por lei. Tendo isto em vista, criou-se a chamada delegação de poderes que, como o próprio nome indica, consiste, em termos latos, numa delegação de competências para praticar determinados actos. Esta figura está consagrada no actual Código do Procedimento Administrativo (adiante CPA), regime que será em princípio alterado pelo projecto de novo CPA. Esta alteração irá ser analisada adiante.

A definição dada acima carece de maior aprofundamento. A doutrina oferece várias hipóteses de definição deste conceito. O Prof. Freitas do Amaral define a delegação de poderes como sendo “o acto pelo qual um órgão da Administração, normalmente competente para decidir em determinada matéria, permite, de acordo com a lei, que outro órgão ou agente pratiquem actos administrativos sobre a mesma matéria” (definição baseada no Art. 35º, nº1 do CPA). Por sua vez, os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos adoptam uma visão similar sobre a delegação de poderes, acrescentando também que esta pode ser vista como uma relação jurídica interorgânica que consiste na atribuição de poderes funcionais a ambos os órgãos envolvidos.

A nossa definição não diverge muito das definições acima apresentadas, sendo assim o acto jurídico pelo qual o órgão normalmente titular de determinada competência legitima, nos termos da lei, que outro órgão ou agente exerca essa mesma competência. Achamos também que a ressalva dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos é justificada, pois este acto estabelece efectivamente uma relação jurídica duradoura, que produz os seus efeitos continuamente, não sendo os efeitos do acto limitados a uma mera transferência duma competência, estendendo-se também à criação duma relação jurídica que perdura enquanto a delegação de poderes perdurar.

A escolha do título explica-se facilmente. Afinal, a delegação de poderes, sendo uma modalidade de desconcentração administrativa, serve um propósito de facilitar o Direito Administrativo e de fazer a Administração mais eficiente e mais célere nos seus trâmites, tendo em conta que uma delegação de tarefas mais morosas e demoradas, assim como uma divisão lógica do trabalho poderão facilitar a tarefa dos agentes administrativos. Claro que a desconcentração também traz alguns inconvenientes, como a possibilidade da unidade da acção administrativa ser posta em causa devido à proliferação dos centros de decisão (no fim de contas, quanto mais agentes tiverem a possibilidade de decidir, maior será a hipótese de não ser conseguida uma unidade na acção administrativa). No entanto, consideramos que as vantagens são consideravelmente superiores às eventuais desvantagens. Eis o porquê do Direito Administrativo não ser o mesmo sem a figura da delegação de poderes, uma figura que facilita duma forma avassaladora a função administrativa acaba por assumir um papel central no que toca a assegurar a eficiência da mesma.

O regime do projecto do novo CPA relativamente à delegação de poderes ( consagrado no seu artigo 44º) tem largas semelhanças com o anterior regime, excepto no que toca à imputabilidade dos actos delegados. O número 4 do Artigo 44º do projecto do novo CPA refere que “Os atos praticados ao abrigo de delegação ou subdelegação de poderes valem como se tivessem sido praticados pelo delegante ou subdelegante.

Ou seja, se no regime actual os actos delegados são imputáveis ao delegado, no projecto do novo CPA os actos delegados são imputáveis directamente ao delegante. Que consequências é que isto acarreta?

Por um lado, é uma alteração que pode ter várias consequências positivas para o ordenamento jurídico português. Uma responsabilização do delegante pode servir um propósito duma “responsabilização solidária”, na medida em que o delegante também será responsável pelos actos praticados ao abrigo duma delegação de poderes. Por sua vez, isto irá provocar uma maior ponderação no acto de delegação de poderes. Ou seja, ao invés de “empurrar” a responsabilidade relativamente a determinada matéria a um delegado, o delegante irá reflectir duas vezes antes de delegar o acto, até porque tendo em conta que ele será responsabilizado pelos actos delegados, irá escolher um delegado que lhe dê garantias acerca do cumprimento correcto dos objectivos pretendidos pela delegação de poderes. A delegação de poderes deixará de ser um acto cujo (potencial) propósito é criar um “bode expiatório” administrativo, e passará a estar mais perto do seu propósito original de fazer a administração mais eficiente, em vez de ser um mecanismo de isenção de culpa.

Por outro lado, esta responsabilização do delegante poderá ser perigosa. Uma responsabilização solidária poderá responsabilizar o delegante por um acto no qual ele não interveio (ou, se interveio, terá sido para dar instruções laterais relativamente à execução dos actos delegados). Assim, sabendo que está isento de qualquer responsabilidade, o delegado poderá potencialmente praticar actos delegados sem o rigor que lhe é exigido para tal, ou até com dolo.

Não há uma conclusão específica a tirar deste regime, especialmente porque ainda não se encontra em vigor. Apenas a experiência legislativa nos poderá dizer (caso este regime venha a entrar em vigor) se as vantagens superam os contratempos, ou vice-versa.


Existe, no entanto, uma alternativa para que os possíveis contratempos do novo regime possam trazer. Olhando para o novo regime da delegação de poderes, é possível estabelecer paralelos com o instituto de Direito Privado, a representação. Neste instituto, os actos do representante valem como se tivessem sido praticados pelo representado, de maneira semelhante ao regime proposto para a delegação de poderes. Pensamos que daqui se podem extrair alguns instrumentos úteis: a responsabilidade do representante é tutelada de várias maneiras pelo Código Civil, de modo análogo, a responsabilidade do delegado também deveria ser tutelada de modo a que os contratempos acima enunciados sejam reprimidos ou eliminados. 


Miguel Mota
(140112010)

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