Para compreender o principio da legalidade nos
moldes em que ele é hoje acolhido pela doutrina é necessário olhar para trás e
perceber a sua evolução e os seus diferentes significados.
Começando pelo Estado-polícia, característico da
monarquia absoluta, facilmente constatamos que o poder não estava sujeito a
qualquer tipo de limites, fossem estes provenientes da lei ou dos direitos
subjectivos dos particulares.
O surgimento, com a revolução francesa, do Estado de
Direito Liberal traz consigo o princípio da subordinação à lei; o princípio da
legalidade na sua primeira formulação: a formulação negativa. Neste sentido a
lei (ainda apenas a proveniente do Parlamento) é considerada um limite à actuação
da administração pública – esta não pode praticar qualquer acto que a
contrarie. Tal configuração surge num contexto social em que os direitos dos
particulares adquirem extrema importância. Falamos portanto no nascimento deste
principio como garantia dos direitos referidos.
Com a evolução dos tempos surgem três regimes que adoptam
visões distintas do principio da legalidade, influenciadas pelos respectivos
contextos políticos.
Refiro-me, num primeiro momento, às ditaduras do
tipo fascista do século XX. Nestes regimes a actuação da administração pública
continuava submetida à lei. A grande alteração prende-se com o facto
de a lei já não ser a manifestação da vontade do Parlamento mas sim a expressão
do Poder. Assistimos portanto a uma subordinação da administração aos Governos,
que ganham nesta altura uma enorme importância, expressa na possibilidade de
fazerem leis. Surge um princípio
da legalidade que existe apenas para proteger o Estado e os interesses
objectivos da administração pública, passando os particulares a ocupar uma posição secundária.
Outro cenário importante são os regimes comunistas,
que adoptaram uma posição muito própria relativa ao princípio da legalidade. A
lei permanece como um limite à actuação da administração pública. A novidade
assenta no facto de a interpretação dessa mesma lei ser baseada nas concepções
e nas instruções formuladas pelo próprio partido. Surge então o conceito de
legalidade socialista – não uma legalidade resultante de uma interpretação
imparcial, objectiva mas sim uma legalidade viciada pelo socialismo.
Chegamos assim ao Estado social de direito e à
formulação hoje adoptada do principio da legalidade. A primeira grande
transformação tem por base a ideia de que já não existe apenas uma subordinação
à lei. Surge uma subordinação ao Direito na sua totalidade. Manifestação desta
concepção é precisamente o artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo
que revela a visão ampla do termo legalidade. A administração não está apenas
vinculada às obrigações que resultam da lei; mais importante do que isso, está
subordinada ao direito no seu conjunto.
É neste sentido que Fritz Fleiner afirma que “o direito administrativo é/deve ser direito
constitucional concretizado”. Corresponde a uma lógica de um direito
administrativo como instrumento de concretização dos valores do estado de
direito; das grandes opções constitucionais em termos de organização.
Porém Peter Haberle introduz uma nova ideia – a da
dupla dependência entre o direito constitucional e o direito administrativo. O
direito administrativo depende do direito constitucional porque concretiza os
valores da constituição. Mas o direito constitucional também depende do
administrativo porque este não se realiza, não se efectua senão pela via do
direito administrativo.
Assiste-se hoje a um alargamento, por parte da
doutrina, nomeadamente do Professor Vasco Pereira da Silva, da ideia de dupla
dependência. Fala-se então de uma dupla dependência entre o direito administrativo
e o direito europeu – o primeiro depende do segundo porque depende das escolhas
por este feitas. Há, por outro lado, uma dependência administrativa do direito
europeu face ao direito administrativo já que este só se realiza se for
concretizado e aplicado em todos os
estados membros. Mas fala-se ainda de uma dupla dependência relativa a outras
realidades, nomeadamente no quadro do direito global.
Porém a evolução do princípio da legalidade tem
ainda de ser analisada a partir de outro prisma. Hoje
o conceito já não corresponde, exclusivamente, a uma subordinação à lei proveniente da Assembleia da República. Estende-se a uma
subordinação à lei emanada de outros órgãos com competência legislativa
ou seja, do Governo e das Assembleia Regionais. Mais, hoje significa ainda um
respeito pela legalidade estabelecida pela própria administração de que são
exemplos os regulamentos.
Está assim superada a dimensão negativa deste
princípio: a legalidade já não é apenas
um limite. A lei serve, efectivamente, como limite mas não é apenas essa a sua
função. É simultaneamente fundamento
–( já que a administração não pode agir se a actuação não estiver prevista na
lei - princípio da competência), critério
(estabelece os critérios de actuação da administração) e limite.
Como resultado da evolução descrita há quem defenda,
nomeadamente a Professor Glória Garcia, que se deve falar de jurisdicidade em
vez de legalidade, como expressão da amplitude deste conceito. Independentemente da designação utilizada
compreendemos que o termo legalidade tem hoje um sentido de jurisdicidade.
Mariana Terra da Motta
140112004
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