sexta-feira, 21 de março de 2014

O princípio da legalidade: do Estado-polícia aos dias de hoje

Para compreender o principio da legalidade nos moldes em que ele é hoje acolhido pela doutrina é necessário olhar para trás e perceber a sua evolução e os seus diferentes significados.

Começando pelo Estado-polícia, característico da monarquia absoluta, facilmente constatamos que o poder não estava sujeito a qualquer tipo de limites, fossem estes provenientes da lei ou dos direitos subjectivos dos particulares.

O surgimento, com a revolução francesa, do Estado de Direito Liberal traz consigo o princípio da subordinação à lei; o princípio da legalidade na sua primeira formulação: a formulação negativa. Neste sentido a lei (ainda apenas a proveniente do Parlamento) é considerada um limite à actuação da administração pública – esta não pode praticar qualquer acto que a contrarie. Tal configuração surge num contexto social em que os direitos dos particulares adquirem extrema importância. Falamos portanto no nascimento deste principio como garantia dos direitos referidos.

Com a evolução dos tempos surgem três regimes que adoptam visões distintas do principio da legalidade, influenciadas pelos respectivos contextos políticos.

Refiro-me, num primeiro momento, às ditaduras do tipo fascista do século XX. Nestes regimes a actuação da administração pública continuava submetida à lei. A grande alteração prende-se com o facto de a lei já não ser a manifestação da vontade do Parlamento mas sim a expressão do Poder. Assistimos portanto a uma subordinação da administração aos Governos, que ganham nesta altura uma enorme importância, expressa na possibilidade de fazerem leis. Surge um princípio da legalidade que existe apenas para proteger o Estado e os interesses objectivos da administração pública, passando os particulares a ocupar uma posição secundária. 

Outro cenário importante são os regimes comunistas, que adoptaram uma posição muito própria relativa ao princípio da legalidade. A lei permanece como um limite à actuação da administração pública. A novidade assenta no facto de a interpretação dessa mesma lei ser baseada nas concepções e nas instruções formuladas pelo próprio partido. Surge então o conceito de legalidade socialista – não uma legalidade resultante de uma interpretação imparcial, objectiva mas sim uma legalidade viciada pelo socialismo.

Chegamos assim ao Estado social de direito e à formulação hoje adoptada do principio da legalidade. A primeira grande transformação tem por base a ideia de que já não existe apenas uma subordinação à lei. Surge uma subordinação ao Direito na sua totalidade. Manifestação desta concepção é precisamente o artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo que revela a visão ampla do termo legalidade. A administração não está apenas vinculada às obrigações que resultam da lei; mais importante do que isso, está subordinada ao direito no seu conjunto.

É neste sentido que Fritz Fleiner afirma que  “o direito administrativo é/deve ser direito constitucional concretizado”. Corresponde a uma lógica de um direito administrativo como instrumento de concretização dos valores do estado de direito; das grandes opções constitucionais em termos de organização.  

Porém Peter Haberle introduz uma nova ideia – a da dupla dependência entre o direito constitucional e o direito administrativo. O direito administrativo depende do direito constitucional porque concretiza os valores da constituição. Mas o direito constitucional também depende do administrativo porque este não se realiza, não se efectua senão pela via do direito administrativo.

Assiste-se hoje a um alargamento, por parte da doutrina, nomeadamente do Professor Vasco Pereira da Silva, da ideia de dupla dependência. Fala-se então de uma dupla dependência entre o direito administrativo e o direito europeu – o primeiro depende do segundo porque depende das escolhas por este feitas. Há, por outro lado, uma dependência administrativa do direito europeu face ao direito administrativo já que este só se realiza se for concretizado e  aplicado em todos os estados membros. Mas fala-se ainda de uma dupla dependência relativa a outras realidades, nomeadamente no quadro do direito global.

Porém a evolução do princípio da legalidade tem ainda de ser analisada a partir de outro prisma. Hoje  o conceito já não corresponde, exclusivamente, a uma subordinação à lei proveniente da Assembleia da República. Estende-se a uma  subordinação à lei emanada de outros órgãos com competência legislativa ou seja, do Governo e das Assembleia Regionais. Mais, hoje significa ainda um respeito pela legalidade estabelecida pela própria administração de que são exemplos os regulamentos. 

Está assim superada a dimensão negativa deste princípio:  a legalidade já não é apenas um limite. A lei serve, efectivamente, como limite mas não é apenas essa a sua função. É simultaneamente fundamento –( já que a administração não pode agir se a actuação não estiver prevista na lei - princípio da competência), critério (estabelece os critérios de actuação da administração) e limite.

Como resultado da evolução descrita há quem defenda, nomeadamente a Professor Glória Garcia, que se deve falar de jurisdicidade em vez de legalidade, como expressão da amplitude deste conceito.  Independentemente da designação utilizada compreendemos que o termo legalidade tem hoje um sentido de jurisdicidade.

Mariana Terra da Motta

140112004

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