Este excerto corresponde à minha intervenção no debate de hoje, de comparação entre os sistemas administrativos de tipo britânico e francês, durante as alegações iniciais.
O meu grupo estava encarregado da defesa do sistema de tipo francês, e a minha intervenção prendeu-se com a questão da defesa dos direitos dos particulares no âmbito deste tipo de sistema.
"Tal como foi referido pela outra equipa, uma das principais questões que é apontada normalmente como um ponto fraco do sistema do tipo francês é o da fraca protecção que fazem dos direitos dos particulares.
Como muitas das diferenças entre ambos os sistemas hoje em análise, esta radica na medida em que existe um controlo jurisdicional da actuação da Administração Pública (AP) e nos moldes em que esta é feita.
Dir-se-á, como fez a equipa contrária, que o clássico sistema inglês, sujeitando a AP, particulares e qualquer outra entidade, nem que seja o próprio monarca, à "Common Law", e consequente sujeição a tribunais comuns, levará a uma melhor protecção dos direitos dos particulares.
Esta linha de pensamento é refutável. A dualidade de jurisdições que existe no sistema do tipo francês poderá, em última análise, servir os direitos dos particulares de uma forma que o sistema de tipo britânico seria de todo incapaz. É inegável que, pelo menos em certos âmbitos da sua actividade, a AP, quando actua dentro das balizas do Direito Público (atendendo à dicotomia clássica de matriz continental), goza de poderes que são desconhecidos dos particulares e que extravasam a sua capacidade jurídica. Nesse sentido, torna-se premente que o Direito, a ordem jurídica, tome providências quanto a potenciais desequilíbrios que possam surgir nas relações estabelecidas entre estes agentes.
Ora, a meu ver, o sistema francês encontrou o caminho certo, mas tomou-o no sentido errado. Isto é, a dualidade de jurisdições, como explicitada pela minha colega, e a existência de normas específicas que regulem este tipo de actuação da AP, tendo em conta o exposto, justifica-se plenamente. No entanto, justifica-se não no sentido da atribuição de privilégios à AP, não no sentido de a proteger e de lhe conceder vantagens exorbitantes ou um verdadeiro "direito real de liberdade" (na esteira da nomenclatura sugerida por Lucas Pires), deixando os particulares indefesos face às suas investidas. Pelo contrário, o sistema justifica-se exactamente para proteger os particulares e assegurar as suas posições e direitos face à AP, que é a face do poder. Este sim, seria o sentido certo, no âmbito da defesa dos direitos dos particulares, que justificaria por inteiro a existência da dualidade de jurisdições e consequente especialização de juízes.
Esta evolução já se evidenciou e despoletou alterações visíveis nos modernos sistemas de influência francesa, como por exemplo no sistema alemão, que evidencia já uma muito apreciável submissão da AP ao poder jurisdicional. É neste sentido que caminham, e espera-se que continuem a caminhar, os demais países de sistemas similares.
Mais: a existência de uma longa tradição do Direito Administrativo e da AP, com escolas e carreiras especializadas, levam a que os litígios de assuntos desse âmbito sejam dirimidos por pessoas com conhecimentos adequados e melhor preparação e experiência sobre as questões levantadas, e mais aptos à adequada defesa dos direitos dos particulares. Uma organização deste género leva a que o sistema francês seja terreno mais fecundo para o desenvolvimento a nível científico, e a nível da busca pelas soluções mais acertadas aos problemas, ao passo que o inglês, inicialmente firme nas suas tradições e na "rule of law", vê-se obrigado a colmatar as suas lacunas, tardiamente, recorrendo a soluções externas.
O aparecimento dos "tribunals" não é mais do que um reflexo desta realidade, da tão falada "senilidade precoce" do sistema inglês, que demonstra assim a falta de preparação para lidar com as incontornáveis exigências de resposta ao aparecimento de inúmeros e específicos problemas em matérias administrativas, no advento do Estado Social.
Em pleno processo de jurisdicionalização do controlo da actividade administrativa, Inglaterra cria verdadeiras entidades administrativas para dirimir litígios que envolvam a sua AP, dotados de poderes de auto-tutela! Ainda que exista um possível recurso para verdadeiros tribunais administrativos ("courts"), trata-se de uma solução francamente patológica, que aliás demonstra parecenças com o velho instituto do "recurso obrigatório", aqui não dentro de uma estrutura hierárquica, mas ainda dentro do aparelho da AP - e dotado de verdadeiros poderes de auto-tutela. As insuficiências resultantes da tardia entrada inglesa para o mundo do Direito Administrativo reflectem-se assim na evolução distorcida e contrária ao progresso que, ainda que lento, se veio a verificar nos países com sistemas do tipo francês.
Em suma, a meu ver, ainda que não na sua origem clássica, certamente quanto à margem de progressão que teve e que tem ainda tem, apresenta-se o sistema do tipo francês como a solução mais adequada, também ao nível da defesa dos direitos dos particulares. E assim fechamos as alegações iniciais."
Rodrigo Gomes Moreira, nº140112050
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