O paradigma clássico do Direito Administrativo via a Administração como uma entidade agressiva, que não se compadecia com o reconhecimento de direitos aos particulares face a si própria. Estes eram vistos como meros objectos de poder. Autores tradicionais como Mayer consideravam inconcebível o reconhecimento de direitos subjectivos dos particulares face à Administração, e Hauriou, que a análise do ato administrativo seria paralela à análise de um cadáver - o particular vai a juízo para colocar a questão, para que esta seja analisada em abstracto, auxiliando o juiz, não detendo nem defendendo qualquer posição substantiva própria.
Ultrapassadas estas realidades manifestamente traumáticas, e ultrapassadas quaisquer construções que negam a titularidade de posições subjectivas de vantagem dos particulares face à Administração, como as propugnadas por Laferrière e Hauriou (a tal legitimidade processual para defesa de um interesse, meramente de facto, próximo do interesse da Administração) ou Bonnard e Marcello Caetano (a concepção do amplo "direito à legalidade"), coube reconstruir o Direito Administrativo.
O reconhecimento de direitos fundamentais aos particulares extravasa o seu mero reconhecimento a nível político: a sua existência leva a que, consequentemente, tenham que ser reconhecidas posições substantivas aos particulares nas suas relações com a Administração. Tal é a exigência necessariamente levantada em Estado de Direito.
Neste texto, analisarei a resposta dada pela concepção dualista, de origem italiana, que reparte as posições jurídicas dos particulares face à Administração em duas grandes categorias: direitos subjectivos e interesses legítimos (em Portugal "importados" como interesses legalmente protegidos, terminologia que será utilizada doravante).
Esta concepção teve larga adesão em Portugal, particularmente graças à adesão por parte de Freitas do Amaral. Segundo este autor, em ambas as figuras "existe um interesse privado reconhecido e protegido pela lei. Porém, no direito subjectivo essa protecção é imediata e plena, de tal modo que o particular tem a faculdade de exigir à Administração um ou mais comportamentos que satisfaçam integralmente o seu interesse privado (...) No interesse legítimo, porque a protecção legal é mediata - pois o interesse protegido directamente é um interesse público - e não é plena, mas mitigada, o particular não pode exigir à Administração que satisfaça o seu interesse privado, mas apenas que não o prejudique ilegalmente".
Em primeiro lugar, é necessário recuar um pouco, para uma melhor compreensão desta concepção. Como sabemos, o Direito não é um fenómeno meramente lógico-racional, mas histórico-cultural, e muito se pode retirar da origem dos conceitos, para uma melhor análise da sua adequação.
Em Itália, reconhecida já a existência de posições substantivas dos particulares face à Administração, e no âmbito de uma dualidade de jurisdições entre os tribunais comuns e os tribunais administrativos, surge esta construção para que se defina um critério, tão necessário, para justificar e discernir a dualidade de jurisdições. Aos tribunais comuns cabia a resolução de litígios que concernissem direitos subjectivos, enquanto que aos administrativos, os interesses legítimos. Foi com base nesta lógica meramente processual que a construção se implantou em Itália (sendo de notar que nem mesmo em Itália a divisão das jurisdições é já feita com base na docotomia enunciada).
É inegável o papel importante que tem o estudo de Direito Comparado para o desenvolvimento, tão necessário, da dogmática do Direito Administrativo, e da busca pelas soluções mais adequadas. No entanto, existem soluções que poderão funcionar - ou ter funcionado - fora de portas, mas que não se adequam à realidade interna.
O critério da distinção entre direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos nunca foi utilizado como base para a dualidade de jurisdições em Portugal. Tal como referem Rebelo de Sousa/Salgado de Matos: "Deve reconhecer-se que, para além do campo conceptual tal utilidade não pode ser muita: nos textos normativos, ambas as expressões são quase sempre conjuntamente referidas, o que sempre inculcaria serem praticamente idênticos os respectivos regimes." acrescentando ainda que "direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos são apenas diferentes graus de tutela conferida pela ordem jurídica a posições jurídicas subjectivas e as diferenças entre ambos têm, portanto, índole essencialmente quantitativa e não qualitativa".
A conclusão a que se chega é que não existe uma distinção material que leve a que se possa distinguir entre ambas as figuras no plano substantivo. O objecto da posição jurídica do particular poderá ser o mesmo, e ter diferentes formas de protecção e tutela consoante o caso concreto em que seja ameaçado, tal como exemplificam Rebelo de Sousa/Salgado de Matos, utilizando o exemplo do direito de propriedade, em casos de expropriação não titulada (violação de direito subjectivo), e expropriação no âmbito de um procedimento administrativo válido (interesse legalmente protegido, a que a privação do direito venha a ser imposta com observância dos limites legais aplicáveis). A única diferença coloca-se nos expedientes e remédios disponíveis a que, em juízo, os particulares podem recorrer para defenderem os seus interesses - a realidade, o bem defendido, esse é unitário, transversal a todos os meios a que se possam recorrer para o defender.
O aparecimento de outras conceitos, como os interesses difusos, os direitos enfraquecidos, comprimidos, os interesses diferenciados ocasionais e os interesses semidiferenciados (veja-se estes conceitos nas lições de justiça administrativa de Vieira de Andrade), apenas demonstra que, se formos atender à tutela dada pela lei, e as formas de legitimidade processual e às acções adequadas, e não à posição substantiva em si, poderemos sempre descortinar inúmeras formas novas de posição jurídica dos particulares. A eventual utilidade didáctica da distinção entre direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos (uma vez posta já em causa a sua adequação científica) poderá ser, nesse sentido, posta também em causa, pelo aparecimento incessante de novos conceitos.
Nesse sentido, concordo, sem reservas, com a conclusão do Professor Vasco Pereira da Silva, de que não tem "justificação teórica ou cabimento legal distinguir entre direitos de «primeira categoria» e direitos de «segunda categoria». Trata-se, em todos os casos, de «posições substantivas e não meramente processuais dos particulares em relação à Administração, concedidas objectiva e intencionalmente por uma norma jurídica que visa a satisfação, não apenas do interesse público, mas também dos interesses dos particulares. Num caso e no outro, o que pode variar é o conteúdo do direito, directamente atribuído pela lei, ou resultante da maior ou menor amplitude do dever a que a Administração está obrigada relativamente ao particular." Esta conclusão estende-se para todos os efeitos, para refutar quaisquer concepções não unitárias quanto às posições jurídicas substantivas dos particulares face à Administração.
De facto, como escreve Boquera Oliver, "os direitos e as obrigações não têm apelido", e "o facto de uns direitos estarem regulados numas leis e outros direitos noutras leis não influi na sua natureza, e as leis não se diferenciam pelos direitos e obrigações que regulam.". O maior desenvolvimento dogmático e a maior estabilidade do estudo do Direito Civil quanto às denominadas situações jurídicas poderá ser, nesse sentido, aproveitado pelos estudiosos publicistas para criar uma base estável para o desenvolvimento rigoroso do Direito Administrativo, cujos benefícios em última análise reverterão a favor do interesse público (melhor funcionamento da máquina administrativa, e maior rigor do seu estudo) e da defesa dos direitos dos particulares, vectores que orientam a própria existência e finalidade do Direito Administrativo.
Rodrigo Moreira, nº140112050
Rodrigo Moreira, nº140112050
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