quarta-feira, 14 de maio de 2014

A esquizofrenia do contrato público

Tudo começou na passagem do século XIX para o século XX, com o grande desenvolvimento da figura do contrato de concessão, em que a construção e exploração de obras públicas eram transferidas para empresas privadas, devido à escassez de capitais dos poderes públicos para as poderem assegurar directamente e a não intervenção do Estado na actividade económica.
Entendia-se inicialmente que estes contratos de concessão eram de direito privado, perante os quais seriam competentes os tribunais comuns e aplicáveis as regras de direito civil. Contudo, com as grandes mudanças que ocorreram na Europa, começou a formar-se “a convicção de que nem todos os contratos que a Administração celebra são da mesma natureza”.
Já no início do século passado assistiu-se em França ao caso de um município que queria passar do sistema de iluminação a gás, que constava do contrato de concessão, para o sistema de iluminação eléctrica, não estando este previsto no mesmo, mas sendo exigível pelo interesse público. Ora, o Conselho de Estado Francês veio dar razão ao município argumentando que este poderia modificar as prestações contratuais a que o contraente privado estaria vinculado, bastando para tal que o interesse público o exigisse. Nascia, portanto, o contrato administrativo, realidade diferente da do contrato civil, pois naquele existia a supremacia da Administração perante o contraente privado, a fim de garantir a satisfação do interesse colectivo. Surgia assim, em França, a teoria dos contratos administrativos e, para o Professor Vasco Pereira da Silva, uma esquizofrenia. 
Segundo a visão tradicional, seguida pelo Professor Freitas do Amaral, a Administração Pública utiliza cada vez mais a via contratual, na medida em que procura a colaboração dos particulares para prosseguir fins de interesse público. Surge aqui uma dicotomia: se se exercem actividades de gestão privada, aplicar-se-ão contratos de direito privado; se se prosseguem actividades de gestão pública, tratar-se-ão de contratos administrativos. Tal significa que “o contrato administrativo não é sinónimo de qualquer contrato celebrado pela Administração Pública com outrem: só é contrato administrativo o contrato com um regime jurídico traçado pelo Direito Administrativo”. Constitui, deste modo, uma característica essencial destes contratos a subordinação ao regime do Direito Administrativo.
Poderia assim falar-se num carácter “exorbitante” ou “especial” dos contratos administrativos, na medida em que o conteúdo das suas prestações seria susceptível de alteração durante a vigência do próprio contrato, ao contrário do que sucede com os contratos de direito privado.  
Por seu lado, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa entende que “o que autonomiza os contratos administrativos é o facto de o interesse público prosseguido pela Administração não só se encontrar presente, como também prevalecer sobre os interesses privados em presença, o que explica um afastamento do Direito Privado”, no seguimento da doutrina já referida.
Já a Professora Maria João Estorninho defende uma posição em tudo oposta à anterior. Na sua opinião é necessário ultrapassar a visão dicotómica de base francesa entre contratos administrativos e contratos de direito privado da Administração, devendo adoptar-se uma visão uniforme da actividade contratual da Administração. Entende-se que o contrato administrativo não é na verdade exorbitante, dizendo até que “o regime jurídico do contrato administrativo é, em si mesmo, compatível com o Direito Contratual Comum”, visto que os poderes da Administração, que se diziam especiais quanto ao contrato administrativo, encontram poderes equivalentes nos contratos civis. Afirma-se, ainda, que os contratos ditos de direito privado também não são apenas de direito privado, porque a Administração, quando contrata, utiliza regras de direito público, no que toca ao uso de dinheiros públicos.
Assim, o contrato administrativo terá sido “fruto de uma especial interpretação do princípio da separação de poderes e do princípio da repartição jurisdicional de competências”, tendo-se verificado primeiramente a “autonomização processual de certos contratos da Administração” e, só posteriormente, a “substantivação da figura do contrato administrativo”.
A dicotomia esquizofrénica terminou apenas em 2008, com a entrada em vigor do novo Código de Contratação Pública, que veio revogar o capítulo III do Código de Procedimento Administrativo (doravante, CCP), referente aos contratos administrativos. O CCP adoptou uma noção ampla de contrato administrativo, devendo este ser entendido como uma modalidade de contrato público que não se contrapõe aos contratos de direito privado. O legislador estabeleceu um regime comum a todos os contratos celebrados no âmbito da função administrativa.
O CCP veio adaptar a legislação nacional ao Direito Comunitário, uniformizando o regime aplicável aos contratos da Administração Pública e estabelecendo regras comuns em matérias de contratação. Para que pudesse haver um mercado comum era necessário que existissem regulação unitária quanto a esta matéria. Assim, a mudança veio da Europa. Foi graças as diretivas europeias que se liquidou a esquizofrenia existente.

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