Tradicionalmente, no âmbito da
actividade administrativa, onde não existisse nenhuma vinculação legal, a
Administração Pública tinha total liberdade de actuação.
Hoje, o poder discricionário, da
mesma forma que o poder vinculado, são ambos formas de realização do Direito, e
as escolhas feitas no âmbito do poder discricionário nunca são absolutamente
livres, mas sim balizadas pelos princípios estruturantes do ordenamento
jurídico e pela legalidade.
Há abertura quanto ao modo como o
princípio da legalidade tem sido entendido ao longo dos tempos. Originalmente,
a legalidade era entendida em termos estritos, e apenas com uma dimensão
negativa: era a imposição de um limite, que seria feita pela lei proveniente do
Parlamento – um sentido formal de legalidade.
Actualmente, a legalidade é
entendida em termos materiais, não meramente formais, e não tem só uma dimensão
negativa, funcionando como limite – é também fundamento e critério de actuação
da Administração Pública. Desaparece assim ideia de que onde não existe lei, a
Administração goza de liberdade total. Tal como se depreende da leitura do art.
3º do CPA – “à lei e ao direito”, consagrou-se na ordem jurídica portuguesa uma
visão ampla, uma abertura ao sentido do que é a legalidade, que é não apenas a
lei (e muito menos a lei da Assembleia da República), mas que é sim o Direito,
a ordem jurídica no seu todo, o Direito Internacional, a Constituição, os
decretos-leis do Governo, os decretos legislativos regionais, os regulamentos,
e a própria actuação da Administração Pública. Maria da Glória Garcia defende que não mais se justifica falar em princípio de mera legalidade, mas sim de um verdadeiro princípio da juridicidade, pelo qual se deve reger toda a actividade administrativa. Vasco Pereira da Silva concorda com tal tese, mas apenas no plano material, isto é, de que hoje a legalidade abrange todos os elementos mencionados - simplesmente crê ser desnecessária a mudança do nome do princípio.
A abertura do Direito
Administrativo, através da hipertrofia do princípio da legalidade, à
Constituição e aos seus princípios veio revolucionar a actividade
administrativa. A Administração Pública passa a ter como função a concretização
dos valores constitucionais, ainda que na ausência de lei. É esta alteração que
vem alterar de forma fundamental o modo como era encarado o poder
discricionário da Administração, nos termos do paradigma tradicional exposto. O
poder discricionário passa a estar permanentemente limitado pelos princípios
constitucionais, como os elencados nos artigos 267º e 268º da CRP, e caso não
respeite esses princípios na sua actuação, esta será sempre ilegal.
Assim, cai o raciocínio, em
Portugal defendido, por exemplo, por Afonso Queiró, segundo o qual “o poder
discricionário (...) consiste (...) numa outorga de liberdade, feita pelo
legislador à Administração, numa intencional concessão do poder de escolha,
ante a qual se legitimam, como igualmente legais, igualmente correctas de lege
lata, todas as decisões que couberem dentro da série, mais ou menos ampla,
daquelas entre as quais a liberdade de acção administrativa foi pelo legislador
confinada”. Freitas do Amaral, anteriormente defensor desta concepção, entende
hoje que “ não há actos totalmente vinculados, nem actos totalmente
discricionários”, e que “a escolha da decisão a tomar não está apenas
condicionada pela competência do órgão decisório e pelo fim legal – em termos
de se poder afirmar serem indiferenciadamente admissíveis à face da lei todas
as soluções que os respeitem. (...) tal escolha é ainda e sobretudo
condicionada e orientada por ditames que fluem dos princípios e regras gerais
que vinculam a Administração Pública, estando assim o órgão administrativo
obrigado a encontrar a melhor solução para o interesse público; demonstra que o
poder discricionário não é um poder livre, dentro dos limites da lei, mas um
poder jurídico delimitado pela lei”.
A nova lógica do poder
discricionário configura-o como nunca podendo ser um poder à margem da lei, nem
um exercício de uma autonomia da vontade da Administração.
Esta concepção é inteiramente
propugnada por Vasco Pereira da Silva, que rejeita a distinção, na actualidade,
entre actos discricionários e actos vinculados. Todos os actos têm elementos
vinculados e elementos discricionários, o que varia é o grau com que estes
elementos se apresentam.
E esta dualidade não é compatível
com a ideia de uma “margem de livre decisão”, como pretendem Rebelo de Sousa e
Salgado de Matos. Apesar do emprego do vocábulo “livre” poder não querer
significar uma verdadeira possibilidade de acção arbitrária dentro de um
determinado limite de matérias, a designação não é feliz – deve erradicar-se
qualquer associação da ideia de liberdade da actuação da Administração. A
Administração nunca é livre, simplesmente pode ter ou não escolhas durante a
sua actuação. E está sempre limitada pelos princípios constitucionais.
Noutro plano, coloca-se a questão
dos momentos em que se concretiza esta discricionariedade.
Tradicionalmente, como
consequência da maior atenção de que gozava, a discricionariedade era ligada
apenas ao momento da decisão. Hoje, Sérvulo Correia, Vieira de Andrade e Rebelo
de Sousa entendem que a discricionariedade concretiza-se nos momentos da
aplicação da norma aos factos e no da decisão administrativa. Vasco Pereira da
Silva, por outro lado, entende que a discricionariedade concretiza-se também no
1º momento, o da interpretação da norma.
O Direito é uma ciência cultural.
A ciência jurídica não deve fechar os olhos à realidade que a rodeia. Como tal,
com um prático exemplo quotidiano poder-se-á justificar a preferência pela solução
propugnada por Vasco Pereira da Silva.
«Segunda-feira, dia 10 de Março, Alberto
e Bernardo, vereadores encarregados do pelouro das festividades públicas da Câmara Municipal dos municípios do Dragão e do Leão,
respectivamente, recebem na sua secretária uma carta com um recente decreto
regulamentar emitido pelo Governo. Neste lia-se:
“Os vereadores encarregados do
pelouro das festividades públicas do município em que trabalhem, que quiserem que no
presente ano se realizem quaisquer festividades no âmbito do 25 de Abril devem
dirigir-se até à repartição de finanças mais próxima nos próximos 8 dias, e
comunicá-lo ao funcionário indicado no local.”
Alberto dirige-se à sua mulher e
diz-lhe: “Amanhã tenho que ir à repartição de finanças, informar-lhes que
queremos ter festas de 25 de Abril cá no Dragão”.
Bernardo, consternado, dirige-se
à sua mulher e diz-lhe: “Vê tu bem, agora tenho que ir à repartição de finanças
todos os dias até dia 19 dizer-lhes que queremos ter festas de 25 de Abril cá
no Leão, senão não há festas para ninguém.” »
Como se pode compreender, deste
simples exemplo, antes de qualquer aplicação dos factos à norma, há elementos que
implicam necessariamente opções para o órgão que toma a decisão, ainda no
momento da interpretação. Ainda neste momento há elementos discricionários. Os 3 momentos (interpretação, aplicação da norma aos factos, decisão) correspondem a um ciclo lógico, mesmo quando podem ser distinguidos entre si. A margem - que não é nunca livre - não se limita à aplicação e à decisão, mas abrange também a interpretação, ao contrário do que defendia a orientação tradicional, e ao contrário do que defende a maioria da doutrina actual, como Sérvulo Correia, Vieira de Andrade e Rebelo de Sousa.
Tal como defende Vasco Pereira da Silva, nem actos, nem mesmo poderes, são inteiramente vinculados ou discricionários: há sempre elementos das duas naturezas (ao contrário de Freitas do Amaral, que defende que estes últimos podem ser um de ambos).
Rodrigo Moreira, 140112050
Rodrigo Moreira, 140112050
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