quarta-feira, 14 de maio de 2014

Participação dos cidadãos e legitimidade pela via do procedimento

A participação dos cidadãos no procedimento constitui um tema de grande relevo na actualidade.
Ela desempenha um papel fulcral em matérias como o ordenamento do território, o urbanismo e o meio ambiente. 
A administração pública devido ao seu enorme crescimento em termos de autonomia e de complexificação das tarefas administrativas, tem aumentado o nível de participação dos cidadãos na tomada de decisões administrativas. 
Esta questão é relevante, pois permite aos cidadãos controlar e limitar o poder administrativo.
A participação veio permitir uma abertura de uma administração dita autoritária, a uma administração de "serviço".
Esta democratização da administração pública veio reflectir-se numa "acção participada", isto porque, a participação dos privados no procedimento obriga às autoridades administrativas a ponderar sobre os interesses dos cidadãos. 
Isto resulta também numa melhoria significativa das decisões tomadas pela Administração pública e a uma abertura a diferentes perspectivas possíveis para a resolução de problemas. 
Este fenómeno pode ser diferenciado a partir de duas visões distintas:
- o individual 
- o institucional 
 
E é face destas duas modalidades de participação que tem sido colocada a questão dos riscos, ou dos limites a que ela se deve encontrar submetida. 
Apesar da participação dos particulares no procedimento, isto não obriga a que as decisões administrativas tenham de ser forçosamente compromissórias, ou que à Administração  não continue a caber a responsabilidade última pela decisão tomada. Ou seja, a Administração tem de fazer as suas escolhas, não esquecendo as posições dos privados e também da sua colaboração no exercício da actividade administrativa.
Um outro perigo da participação, é o da sobrerepresentação, uma vez que pode implicar o esbatimento da responsabilidade decisória das autoridades administrativas. 
WALTER alerta sobre os cuidados a ter com a participação dos representantes de interesses, pois o Estado de Direito pode caminhar na direção de um Estado associativo e corporativo, ou seja, iria por em causa a responsabilidade última da Administração pelas decisões tomadas, substituindo a legitimidade democrática por uma legitimidade de tipo corporativa. 
 
O Professor Vasco Pereira da Silva, irá se centrar na participação de tipo individual.
Antes de mais, é necessário explicitar que a participação no procedimento pode ser entendida a partir de uma matriz objectivista ( olha para a intervenção dos privados, sobretudo enquanto mecanismo destinado a facilitar e a melhorar a tomada de decisões); e uma matriz de tipo subjectivista ( que concebe a intervenção dos privados como um instrumento de defesa prévia das suas posições jurídicas perante a Administração). 
Para RUI MANCHETE, o facto não deve ser visto como um instrumento de defesa de posições jurídicas subjectivistas, mas como fazendo parte de um processo de aquisição de conhecimento pela Administração.
É, neste sentido objectivista que RUI MANCHETE interpreta dos artigos 7º E 8º do Código do Procedimento Administrativo ( princípios da colaboração e da participação), os quais, em sua opinião consagrariam uma « participação (…) não apenas consubstanciada no instituto do contraditório», mas destinada à «ponderação dos interesses».
O Professor Gomes Canotilho juntamente com o Professor Vasco Pereira da Silva, manifestam-se pela posição oposta, que consideram que aquilo que caracteriza a visão moderna do procedimento admnistrativo é a revalorização da sua dimensão subjetivista, designadamente a sua função de garantia dos direitos fundamentais. 
Gomes Canotilho distingue dois “momentos” de progressiva abertura do procedimento relativamente aos direitos fundamentais:
- No primeiro momento, começou por se defender a ideia de que o « o Estado prestador faz surgir uma nova relação jurídica, que é caracterizada pelo “ status activus processualis” ». 
Em causa estava a “garantia constitucional” « de uma determinada protecção jurídica do cidadão no procedimento», que resultava da consideração de « que o direito do procedimento administrativo tem uma base jurídico-constitucional, que protege contra alterações e limitações». É, por esse motivo que GOMES CANOTILHO defende esta orientação, « a participação no procedimento de decisão constitui, de forma imediata, uma “ posição subjectiva” inerente ao direito fundamental (…), e é, ela  mesma, o exercício de um direito fundamental». 
Está-se, pois, neste fase, perante um entendimento da intervenção dos privados no procedimento como direito fundamental, e como modo de exercício desses direitos subjectivos consagrados na Constituição. 
- Na segunda fase, « a dimensão de procedimento continua a ser valorada como dimensão indivisível dos direitos fundamentais». Acentua-se, a dimensão subjectiva da participação no procedimento, que passa a ser vista como indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais. 
O entendimento dos direitos fundamentais como direitos de defesa perante todas e quaisquer lesões decorrentes da actuação da Administração, vai projectar-se na ideia de “defesa” para o domínio do procedimento, considerando os direitos fundamentais como dotados de uma dupla dimensão material e procedimental.
É, pois, dos próprios direitos fundamentais que decorre um direito dos privados à defesa das suas posições de vantagem perante a Administração, por intermédio de um procedimento. Pelo que a participação no procedimento administrativo constitui um instrumento de proteção jurídica subjectiva, quando possam estar em causa direitos fundamentais. 
Deve ser concebida, a participação no procedimento, como um instrumento de boa administração ou de proteção jurídica?
Esta questão, tem como objectivo saber se é a visão objectivista que representa a mais moderna orientação dogmática em matéria de participação no procedimento administrativo, ou se é a subjectivista. 
Esta divergência apresenta duas orientações distintas:
1ª orientação: segundo a doutrina italiana mais recente, a participação no procedimento deve ser vista em função da qualidade da decisão admininstrativa, concebendo o particular como um colaborar da Administração;
2ª orientação: na moderna doutrina alemã, o que deve importar é a perspectiva da proteção jurídica dos privados através da participação, sendo este procedimento entendido como uma forma de realizar os direitos fundamentais. 
Segundo o entendimento objectivista da participação, o procedimento era visto, como proteção preventiva dos direitos subjectivos, hoje pretende-se «co-administrar o cidadão» (SEPE). Por este motivo se considera que o direito a obter um procedimento justo, rápido e participado diz respeito à maior democratização da Administração e constituem o pressuposto de uma relação correta entre o Administração e os administrados. 
Este alargamento da participação é operado mediante o recurso à categoria dos interesses difusos ou dos interesses colectivos. Estas categorias são de difícil delimitação e densificação dogmática. 
Tanto um sector importante da doutrina, como da jurisprudência, chegaram a uma « noção ampla de interesse legítimo, capaz de permitir fazer entrar nessa figura os chamados interesses difusos, enquanto sentidos por uma pluralidade indiferenciada de sujeitos» (SCOCA).
Seja como espécie de interesse legítimo, seja como figura autónoma, o interesse difuso surge, no direito italiano, como uma categoria teórica cujos contornos são praticamente impossíveis de delimitar. 
O objectivo da legitimação procedimental é o de dar satisfação a interesses públicos e privados, que exprimam uma necessidade de tutela.
Por isso o alargamento da participação dos privados decorrente da tutela de interesses difusos destina-se a conseguir a «presença (…) no interior do procedimento administrativo, de uma pluralidade de sujeitos que se encontrem em condições de representar da melhor maneira a situação sobre a qual se intervém permitindo desta forma à Administração Pública realizar as operações necessárias para chegar à solução naquele momento mais conveniente» ( PERICU).
Para além disso o alargamento da participação dos privados no procedimento, tem vindo a encontrar outras justificações de carácter objectivo, tomando por base o princípio da imparcialidade, ou princípios como o da paridade de tratamento da Administração (…). 
Este entendimento objectivista da participação do privado teria o seu âmbito de aplicação privilegiado no domínio dos procedimentos de massa e da actividade planificadora da Administração. 
A intervenção dos privados no procedimento de planificação, deveria ser anterior a qualquer “ ponderação” dos interesses em jogo, de forma a que os particulares possam comparticipar da fase de instrução procedimental. 
Assim, de acordo com uma posição de maior abertura, devem ter legitimidade para actuar no recurso contencioso todos aqueles que estão legitimados para participar no procedimento. 
Seguindo um entendimento mais restritivo, há que separar a legitimidade procedimental da processual. Para PERICU, « todos aqueles que têm legitimidade para participar no procedimento (…) deveriam também poder fazer valer em sede jurisdicional o seu interesse em tal participação».
Mas, se a legitimidade para participar no procedimento nem sempre coincide com a legitimidade para recorrer da decisão final, deve permitir-se o recurso ao tribunal daqueles privados, que dotados de legitimação procedimental, foram impedidos de participar no procedimento. Isto porque, de acordo com esta orientação italiana, e tendo em conta os princípios da paridade da posição da Administração e do particular no procedimento, e da completude da instrução, a não representação de todos os interesses relevantes no procedimento projeta-se na validade da decisão final, existindo nesse caso uma ilegalidade por violação do principio da imparcialidade.
Assim, se um particular afectado por uma determinada decisão administrativa não tiver podido participar no procedimento, tal pode inquinar a validade do acto praticado. 
A não audição de um particular interessado, poderia implicar uma ilegalidade material desse mesmo acto administrativo, por ter sido praticado sem a correta ponderação de todos os interesses envolvidos, por violação do princípio constitucional da “ protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos” (vide os artigos 266º, nº1 e 4º do Código do Procedimento Administrativo).
De outro lado, temos a orientação alemã,  neste caso o direito ao procedimento não é visto apenas como um direito fundamental, como se considera também que constitui uma exigência de todos, e de cada um, dos diversos direitos fundamentais, que as decisões administrativas que os possam afectar tenham de ser tomadas na sequência de um procedimento, em que sejam ouvidos todos aqueles que sejam afectados nesses seus direitos subjectivos. 
A participação dos particulares é, pois no direito alemão, entendida como a projecção no domínio do procedimento administrativo da titularidade de direitos subjectivos públicos por parte dos cidadãos, assim como da sua posição de sujeitos das relações jurídicas estabelecidas com a Administrativa Pública. 
No direito alemão a orientação dominante é de cariz subjectivista, mas surgiram novas tendências minoritárias, que vão ao encontro das teses objectivista defendidas pela doutrina italiana, designadamente por defenderem o alargamento da intervenção no procedimento a sujeitos que não sejam possuidores de posições jurídicas subjectivas (FABER). 
Trata-se, nestes casos, de situações em que a Administração não se limitaria a ouvir os cidadãos directamente interessados, nem a esperar passivamente que os particulares venham até si, antes cria estruturas próximas destinadas ao surgimento e à manifestação desses interesses. 
Para o Professor Vasco Pereira da Silva, as criticas feitas por FABER não têm razão de ser. Pois, tais actuações regulamentares, em si mesmas, não devem, na sua opinião, ser reconduzidas a um esquema relacional, ainda que a intervenção dos particulares no procedimento prévio à sua emissão possa ser configurada de acordo com os esquemas subjectivistas. 
Mas independentemente, da filosofia-base de carácter objectivista ou subjectivista que se defenda, é preciso reconhecer que a participação dos privados no procedimento é susceptível de apresentar distintos graus ou níveis de individualização. 
Assim, por exemplo, a posição activa do imediato destinatário de um ato administrativo será, à partida mais forte do que a do particular, que é afectado por essa medida mas não é por ela directamente visado e daí a distinção doutrinária entre partes necessárias e eventuais. 
Conforme explica GIANNINI, interessados necessários são aqueles « sem os quais não é possível a tramitação e o desenvolvimento do procedimento, por defeito na relação jurídico-formal correspondente que implica o procedimento».
Os interessados possíveis ou eventuais, são aqueles cujos interesses « possam ser afectados pela resolução, e que se apresentem pessoalmente no procedimento, antes de sobre ele ter recaído uma solução». 
Assim, enquanto que os particulares imediatamente visados pelo ato administrativo constituem partes necessárias no procedimento administrativo, já serão de considerar como partes possíveis ou eventuais aqueloutros, afectados pelos denominados « actos administrativos com eficácia em relação a terceiros». 
A participação dos privados poderá, em certos casos, ir mesmo para além da ideia de tutela jurídica de direitos subjectivos, e implicar o chamamento de particulares simplesmente interessados na solução do caso. 
Tal poderá ser, por exemplo, o caso das actuações administrativas de planeamento, devem ser entre nós qualificados como regulamentos. Pois, a legitimidade para impugnar normas regulamentares não pertence apenas aos particulares por elas lesados nos seus direitos subjectivos mas igualmente àqueles que pode vir « a sê-lo, previsivelmente, num futuro próximo», ou seja, aqueles privados que não podem fazer valer perante a Administração uma qualquer posição jurídica de vantagem. 
A participação é, pois considerada como um instituto destinado, à protecção de interesses próprios dos particulares perante a Administração, sendo essa participação subjectiva entendida em termos amplos. Partes legítimas para intervir no procedimento são os titulares de direitos subjectivos, nos quais cabem tanto as posições directamente conferidas pelo legislador como também aquelas que decorrem dos direitos fundamentais. 
Existe por, comunicação entre os interesses dos particulares e das autoridades administrativas, sem que isso signifique a dissolução da posição do particular no seio da Administração Pública. O particular colabora com a Administração, mas não se confunde com ela; ele é um sujeito activo, titular de interesses próprios, e dos correspondentes direitos subjectivos, que faz valer através da sua intervenção no procedimento. 
Em termos gerais, pode-se afirmar que, no direito português, a participação é vista de uma perspectiva subjectivista, enquanto instrumento de garantia das posições jurídicas dos privados perante a Administração. 
Entre a  Administração e os privados estabelece-se uma relação jurídica procedimental, que permite tanto a tutela dos interesses dos privados, como a melhoria da qualidade e eficácia das decisões administrativas. 
Caso particular da participação no procedimento administrativo é o instituto do direito de audiência. 
A consagração deste direito de audiência prévia do interessado, de acordo com as palavras de FREITAS DO AMARAL, significa uma «pequena-grande revolução». 
Questão polémica é também a do conteúdo do direito de audiência, designadamente, a de saber se o privado é chamado a pronunciar-se apenas acerca da questão a decidir ou se mais do que isso, deve ser informado só sentido provável da decisão administrativa e das razões justificativas dessa previsível escolha. 
Seguindo a orientação de FREITAS DO AMARAL, de considerar que o particular ouvido deve ser confrontado com um projecto de decisão. 
A Administração tem primeiro que fundamentar o seu projecto de decisão, tem que fundamentar, em segundo lugar, por que motivos afasta a audiência do interessado, se o decidir fazer; e tem de fundamentar, em terceiro lugar, por que motivos não atende as razões invocadas pelo particular. 
Mas mais controvertido ainda, é o problema da consequência jurídica da falta de audiência do privado. 
De acordo com FREITAS DO AMARAL, temos duas correntes de opinião a respeito desta matéria. Há quem diga que o direito à audiência prévia, como direito conferido directamente pela Constituição é um “direito fundamental”, e que a inobservância das audiências prévias é a nulidade do ato final do procedimento. Por outro lado, há quem entenda que se gera apenas a anulabilidade do ato definitivo». 
FREITAS DO AMARAL pronunciar-se pela mera anulabilidade, citando dois argumentos: 
1) Os direitos fundamentais são apenas os direitos inerentes à dignidade essencial da pessoa humana», o que excluiria o direito de audiência;
2) Segundo a nossa jurisprudência, a falta de audiência do arguido em processo disciplinar não gera nulidade mas simples anulabilidade.
O Professor Vasco Pereira da Silva não partilha da mesma opinião. 
Os direitos fundamentais, não devem ser entendidos como possuindo apenas um conteúdo substantivo, mas constituem igualmente garantias de procedimento. 
Assim, a não audiência do particular interessado implicaria sempre a violação de um direito fundamental que seria agora não o direito de audiência, mas aqueloutro direito fundamental que fosse, em concreto, afectado por uma decisão administrativa. 
Em suma, quer pela via da qualificação do direito de audiência como direito fundamental, quer pela via dos direitos fundamentais afectados pelas actuações administrativas terem de resultar de um procedimento participado e em que os privados seus titulares sejam ouvidos, chegamos à conclusão de que uma decisão administrativa praticada sem a audiência dos particulares interessados viola o conteúdo essencial de um direito fundamental, pelo que deve ser considerada nula, nos termos do artigo 133º, nº2 do Código do Procedimento Administrativo. 

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