A esquizofrenia do contrato público
Tudo começou
na passagem do século XIX para o século XX, com o grande desenvolvimento da
figura do contrato de concessão, em que a construção e exploração de obras
públicas eram transferidas para empresas privadas, devido à escassez de
capitais dos poderes públicos para as poderem assegurar directamente e a não
intervenção do Estado na actividade económica.
Entendia-se
inicialmente que estes contratos de concessão eram de direito privado, perante
os quais seriam competentes os tribunais comuns e aplicáveis as regras de
direito civil. Contudo, com as grandes mudanças que ocorreram na Europa,
começou a formar-se “a convicção de que nem todos os contratos que a
Administração celebra são da mesma natureza”.
Já no
início do século passado assistiu-se em França ao caso de um município que queria
passar do sistema de iluminação a gás, que constava do contrato de concessão, para
o sistema de iluminação eléctrica, não estando este previsto no mesmo, mas sendo
exigível pelo interesse público. Ora, o Conselho de Estado Francês veio dar
razão ao município argumentando que este poderia modificar as prestações
contratuais a que o contraente privado estaria vinculado, bastando para tal que
o interesse público o exigisse. Nascia, portanto, o contrato administrativo,
realidade diferente da do contrato civil, pois naquele existia a supremacia da
Administração perante o contraente privado, a fim de garantir a satisfação do
interesse colectivo. Surgia assim, em França, a teoria dos contratos administrativos
e, para o Professor Vasco Pereira da Silva, uma esquizofrenia.
Segundo a
visão tradicional, seguida pelo Professor Freitas do Amaral, a Administração
Pública utiliza cada vez mais a via contratual, na medida em que procura a
colaboração dos particulares para prosseguir fins de interesse público. Surge
aqui uma dicotomia: se se exercem actividades de gestão privada, aplicar-se-ão
contratos de direito privado; se se prosseguem actividades de gestão pública,
tratar-se-ão de contratos administrativos. Tal significa que “o contrato
administrativo não é sinónimo de qualquer contrato celebrado pela Administração
Pública com outrem: só é contrato administrativo o contrato com um regime
jurídico traçado pelo Direito Administrativo”. Constitui, deste modo, uma característica
essencial destes contratos a subordinação ao regime do Direito Administrativo.
Poderia
assim falar-se num carácter “exorbitante” ou “especial” dos contratos
administrativos, na medida em que o conteúdo das suas prestações seria susceptível
de alteração durante a vigência do próprio contrato, ao contrário do que sucede
com os contratos de direito privado.
Por seu
lado, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa entende que “o que autonomiza os
contratos administrativos é o facto de o interesse público prosseguido pela Administração
não só se encontrar presente, como também prevalecer sobre os interesses
privados em presença, o que explica um afastamento do Direito Privado”, no
seguimento da doutrina já referida.
Já a
Professora Maria João Estorninho defende uma posição em tudo oposta à anterior.
Na sua opinião é necessário ultrapassar a visão dicotómica de base francesa
entre contratos administrativos e contratos de direito privado da Administração,
devendo adoptar-se uma visão uniforme da actividade contratual da Administração.
Entende-se que o contrato administrativo não é na verdade exorbitante, dizendo
até que “o regime jurídico do contrato administrativo é, em si mesmo,
compatível com o Direito Contratual Comum”, visto que os poderes da
Administração, que se diziam especiais quanto ao contrato administrativo, encontram
poderes equivalentes nos contratos civis. Afirma-se, ainda, que os contratos
ditos de direito privado também não são apenas de direito privado, porque a
Administração, quando contrata, utiliza regras de direito público, no que toca
ao uso de dinheiros públicos.
Assim, o
contrato administrativo terá sido “fruto de uma especial interpretação do
princípio da separação de poderes e do princípio da repartição jurisdicional de
competências”, tendo-se verificado primeiramente a “autonomização processual de
certos contratos da Administração” e, só posteriormente, a “substantivação da
figura do contrato administrativo”.
A dicotomia
esquizofrénica terminou apenas em 2008, com a entrada em vigor do novo Código
de Contratação Pública, que veio revogar o capítulo III do Código de
Procedimento Administrativo (doravante, CCP), referente aos contratos
administrativos. O CCP adoptou uma noção ampla de contrato administrativo,
devendo este ser entendido como uma modalidade de contrato público que não se
contrapõe aos contratos de direito privado. O legislador estabeleceu um regime
comum a todos os contratos celebrados no âmbito da função administrativa.
O CCP veio
adaptar a legislação nacional ao Direito Comunitário, uniformizando o regime
aplicável aos contratos da Administração Pública e estabelecendo regras comuns
em matérias de contratação. Para que pudesse haver um mercado comum era
necessário que existissem regulação unitária quanto a esta matéria. Assim, a
mudança veio da Europa. Foi graças as diretivas europeias que se liquidou a
esquizofrenia existente.
Sem comentários:
Enviar um comentário